O cientista David P. Franklin deu à
Justiça americana detalhes de como os promotores de venda e consultores médicos
da farmacêutica Parke-Davis, comprada depois pela Pfizer, eram orientados a
falar com os profissionais da saúde.
Franklin entrou na empresa em abril de
1996 e pediu demissão menos de três meses depois, principalmente por não
concordar com práticas de promoção do remédio Neurontin. Ele gravou e registrou
várias conversas e e-mails para comprovar as denúncias.
O Neurontin foi lançado em 1994 como
medicamento coadjuvante contra crises de convulsão em pacientes epiléticos que
não respondiam bem a outros tratamentos. Era um mercado relativamente pequeno.
Acontece que as vendas anuais do medicamento passaram de 97,5 milhões de
dólares em 1995 para 2,7 bilhões de dólares em 2003- um crescimento de 2.700%.
E não foi exatamente porque tivesse aumentado o número de doentes com esse
quadro tão específico.
Segundo Franklin, a companhia
contratava consultores médicos para atuar exclusivamente como representantes de
venda e oferecer dinheiro a quem receitasse o medicamento e conseguisse
influenciar o maior número de colegas a fazer o mesmo. Os consultores eram
orientados também a dizer que estavam "envolvidos em pesquisas", para
passar maior credibilidade, quando na verdade só estavam envolvidos mesmo em
engordar suas contas bancárias. Não havia estudos relevantes nem dados
comprovados para divulgar.
No mundo ideal, consultores médicos
trabalham em funções médicas, científicas, sem nenhum vínculo com departamentos
de vendas. No mundo ideal, eles são treinados para oferecer informações
técnicas (e verdadeiras) sobre os produtos da empresa para onde trabalham, de
modo a ajudar os médicos nos consultórios.
Mas o mundo real pode ser diferente. De
acordo com o depoimento, a farmacêutica fornecia informações falsas sobre o
medicamento, plantava pessoas na plateia de congressos para fazer perguntas
sobre os benefícios do remédio, promovia medicamentos para usos não aprovados,
dava dinheiro para que médicos permitissem a presença de representantes do
laboratório nas consultas e ainda distribuía uns trocados para aqueles que
fornecessem gravações de conversas com pacientes que estavam em tratamento com
a droga. Eram US$ 50 por cabeça mais pagamentos de despesas gerais. Teve médico
que mandou mais de 300 áudios, diz Franklin, embolsando US$ 15 mil na
brincadeira. Segundo ele, essas gravações não serviram, na época, para compor
nenhum estudo clínico. O negócio ali era incentivar os participantes a colocar
mais pacientes em tratamento contínuo com o remédio. A conclusão da Justiça é
que essas práticas tiveram potencial de induzir erro ou abuso nas prescrições.
Quando
um remédio consegue registro no órgão regulador (Anvisa, no Brasil; FDA, nos
EUA), o fabricante só tem permissão para promover a medicação para o tratamento
indicado na bula. Mas o médico pode prescrever, por conta e risco, para uso off-label (fora da bula, em tradução livre), para
qualquer condição, se analisar as evidências disponíveis e julgar adequado.
É que uma substância química costuma
ter várias ações no organismo, boas e ruins. De repente, uma droga contra um
tipo de câncer funciona para outro, um antidepressivo pode curar ejaculação
precoce, um comprimido para tratar epilepsia se mostra eficiente para ataques
de pânico.
Acontece com a bupropiona, o princípio
ativo de antidepressivos que promovem a circulação de dopamina no cérebro. Ela
é receitada para combater a perda de libido causada por outra classe de
antidepressivos, a dos serotoninérgicos, que bombam a serotonina. Estes últimos
são os mais populares, tendo o Prozac (fluoxetina) e o Lexapro (escitalopram)
na família. Já os próprios serotoninérgicos são muitas vezes receitados contra
ejaculação precoce. O efeito deles na redução da libido pode ser benéfico para quem
se afoba demais na cama, promovendo relações sexuais mais duradouras, desde que
administrados na dose exata para evitar broxadas.
O caso mais famoso de remédio em que o
efeito colateral passou a ser visto como o principal é o do Viagra. Os
pesquisadores faziam testes com o princípio ativo da droga, a sildenafila, para
tratar uma doença cardiovascular e perceberam que os voluntários relatavam
ereções frequentes e duradouras, mesmo aqueles com impotência sexual crônica.
Então os estudos caminharam nessa direção e a companhia entrou com pedido de
aprovação no FDA para o tratamento de disfunção erétil.
Nos casos em que a droga já está no
mercado, aprovada para outro fim, o laboratório precisa voltar uma casa e fazer
testes específicos de eficácia e segurança das novas utilizações se quiser
tirar proveito comercial delas. O processo leva tempo, custa dinheiro e nem
sempre termina bem. Acontece, por exemplo, de os estudos mostrarem que o
remédio não faz efeito para outros males ou, pior, que aumenta o risco de morte
em determinados grupos de pacientes. Pode ser também que o trâmite da aprovação
demore e saia quando a patente do produto estiver para expirar.
Por conta disso, a indústria às vezes
tenta pegar atalhos e aumentar, ela própria, o número de consumidores de seus
comprimidos vendendo-os pelo efeito colateral. Escondida.
Receitar essas alquimias não tem nada
de ilegal, como já dissemos. É parte da função de um médico. Esse poder que os
doutores têm, por outro lado, atiça os laboratórios a dar-lhes mais agrados,
começando o círculo vicioso.
Fonte : Site Superinteressante